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A reação terapêutica negativa como expressão da pulsão de morte

Autora: Viviane Evangelista de Sousa


De olhos estatelados, fixos na analista, Lia chora. Ainda não sei ao certo o que dizia aquele choro, nem tão pouco sei exatamente o que ele levava.

No momento, a imagem de um dia ensolarado constrói-se em meus pensamentos. Daquele céu que exibe um sol quente e amarelo, porém, derepente, uma nuvem grande, poderosa, invade o cenário, varre o sol e pronto. O que se esperava do tal dia ensolarado, foi-se. Agora por um bom tempo será somente nuvem. Chove um tanto, depois passa e mantém-se a nuvem.


Era assim com Lia, as lágrimas-nuvem levavam toda a sua fala, não havia mais som, sem palavras. E em suas repetidas finalizações em tom bem baixinho, quase que em segredo, Lia dizia: “Eu não quero falar mais não, depois... está tudo bem”.


A escolha deste caso inspirada pela clínica se deu através de um percurso de quase seis anos de acompanhamento da paciente Lia, que faleceu em seis de agosto deste mesmo ano, aos 29 anos de idade, após uma cirurgia que teve por objetivo retirar material para biópsia, para análise. Era preciso análise. História que mobilizou na analista o intragável sentimento de inutilidade, fracasso. E nesse palco algumas questões foram surgindo e as já existentes intensificaram-se.


Porque a cada melhora Lia desistia do trabalho analítico? Porque a cada movimento de busca de um conhecimento dela mesma, seu corpo piorava? Porque “distrair-se” com aquele corpo falando dele para a analista, porém recusando-se a pensar esse corpo como algo mais? Porque evitar a construção de novos sentidos? Afastava-se de toda possibilidade de conhecimento e reconhecimento de seu mundo, e diante das tentativas da analista de prosseguimento do trabalho, Lia parecia sentir-se violada. Em Lia, as “boas” notícias do ponto de vista médico (a melhora dos resultados dos exames, repetidos por rotina mensalmente; retirada de medicamentos; alta de algum outro especialista) repercutiam através de uma indiscreta tristeza e desapontamento. Assim também acontecia com os movimentos de avanço indicativos de algum crescimento, de alguma mudança, de algo valioso na análise. Lia renovava seu sofrimento transbordando-o para o corpo. E tudo recomeçava, faltava às sessões, recusava-se a falar, as lágrimas-nuvem entravam em cena, os exames clínicos também pioravam.

Sobre Lia e seu tratamento.


Lia deu início às sessões de *hemodiálise no ano de 2004, após o diagnóstico de *Insuficiência Renal Crônica (I.R.C.). A causa primária de seu problema renal foi uma doença de origem autoimune chamada *Glomerulonefrite rapidamente progressiva. Lia era a filha mais velha de uma prole de três, os outros dois são homens com diferença de aproximadamente dois anos entre os três. Relatava uma ligação muito forte com seu pai, que havia falecido quatro anos antes de Lia apresentar os primeiros sintomas de I.R.C..


O pai também falecera por implicações de doença renal crônica, no entanto em seu caso o tratamento hemodialítico não havia sido implementado. Não houve tempo.

Lia fazia três sessões de hemodiálise semanalmente, embora comparecesse à clínica quase todos os dias, uma vez que a considerava sua casa. Ao longo desses anos de tratamento desenvolveu uma relação transferencial intensa com seu médico, que também havia cuidado de seu pai. Freud traz à luz em O problema econômico do masoquismo, 1924, que no decorrer da evolução infantil, ocorre uma progressiva libertação da influência parental, e aos pais se seguem “substitutos” por eles suscitados, que de certo modo tornam-se modelos de autoridade. Lia atribuía à figura de seu médico poderes extremos, carregados libidinalmente. Era atendida formalmente pela analista uma vez por semana (e em alguns momentos que não eram de hemodiálise chegava com algum mal-estar na clínica, sendo também atendida pela analista).

Em 2004, meses antes de descobrir a insuficiência renal formou-se em Administracão de Empresas. Apesar da falta do pai, dizia-se feliz com a formatura e cheia de projetos. Após o início da hemodiálise desinveste de libido seus projetos de trabalho, pós-graduacão, namoro, e até mesmo o transplante renal desejado pela grande maioria dos pacientes não a interessava. Parecia romper com os objetos que lembravam vida.

Relatava uma boa relação com os irmãos, apesar de alguns conflitos que dizia serem “normais”. Quanto à mãe, sentia-a distante e fria a maior parte do tempo, dizendo que a mesma nunca demonstrava carinho e interesse por sua vida, ao contrário do pai descrito como amoroso, carinhoso, atento.


Segundo Gomes, em seu prefácio à obra de Mecozzi, 2003, “A tendência humana de perpetuar situações de sofrimento e de nelas voltar a incorrer, após consideráveis esforços para a melhoria e a reconstrução de condições mais satisfatórias de vida, verifica-se amiúde não apenas nos consultórios psicológicos, como também no cotidiano, bastando para isso que o observador esteja atento e interessado nos demais seres humanos ao seu redor”, p.9. Continua dizendo que este processo não refere-se a “qualquer mal-estar psíquico”, mas sim, a uma certa “impulsão à negatividade, à falta, à perdição e ao fracasso”. Segue descrevendo tais pessoas como sensíveis, capazes, talentosas, mas que no entanto retrocedem em seus anseios vitais “como que magnetizados pelas profundezas e abismos mortíferos”. Ressalta que quando ocorre a remissão de sintomas ou de uma aparente cura (grifo meu), “ressurgem e possuem-nas as mais incapacitantes inibições e atitudes auto-lesivas”. Nestes casos, a atividade auto-lesiva ou autodestrutiva apresenta-se como um movimento interno de desinvestimento e desestruturação das funções do ego e de seus investimentos objetais.


O fenômeno da reação terapêutica negativa foi reconhecido por Freud em 1919, quando detectou peculiaridades da expressão de ruptura do vínculo analítico; ruptura esta incontornável e seguida aos avanços da análise. Refere-se a esses pacientes, em seu texto O ego e o id, 1923, como pessoas que se comportam de forma bastante peculiar. “Se lhes damos esperanças e demonstramos satisfação com o progresso do tratamento, parecem ficar insatisfeitos e, frequentemente, logram piorar seu estado... toda resolução parcial que produziria uma melhora, ou uma suspensão sintomática temporária em outros pacientes, causa aqui uma intensificação momentânea do sofrimento. Em vez de melhorarem, essas pessoas pioram... o que está em jogo é um sentimento de culpa que só se apazigua no estar doente e que não quer, de modo algum, renunciar ao castigo do sofrimento... esse sentimento de culpa se expressa somente na forma de uma resistência tenaz contra o restabelecimento”, p. 57. Aqui parece estar-se diante de algo irrepresentável para o paciente, que de acordo com Mecozzi, 2003, reflete-se na inutilidade de qualquer tentativa do analista de interpretação, que pouco pode contar com as lembranças do paciente e associações livres. Uma vez sentida a mobilização interna, provocada pela interpretação, o ego do analisando trava uma luta para excluí-la de seu mundo psíquico, na tentativa de expulsar toda representação que o faca pensar em algo novo.


Freud em O ego e o id, 1923 diz que “é preciso considerar a consciência como sendo apenas uma das qualidades do psíquico e lembrar que diversas outras qualidades podem, ou não, somar-se a ela”, p. 28. Prossegue acrescentando que, ao lidar com experiências nas quais a dinâmica psíquica tem um papel importante, constata-se, obrigatoriamente, que existem processos psíquicos, que, embora não se tornem conscientes, são intensos a ponto de produzirem repercussões que afetam significativamente a vida psíquica do sujeito. Neste ponto reconhece-se que o elemento responsável por manter tais processos psíquicos fora da consciência é o recalque que manifesta-se como resistência. E é exatamente com aquilo que o recalque colocou de lado que o sujeito terá que se confrontar durante a análise. Nesse mesmo texto, Freud acrescenta que “uma importante tarefa da análise é vencer a resistência que o eu tem em entrar em contato, tomar conhecimento, e se ocupar do recalcado... sempre que suas associações tendem a se aproximar do recalcado, ele não mais consegue prosseguir com a cadeia associativa”, p. 31. Era assim com Lia; em determinados pontos de suas associações, erguia-se uma barreira.


Quanto às pulsões de morte, Freud em 1923, observa que as mesmas são submetidas a processos diferentes. Em parte, tornam-se inofensivas quando mescladas aos componentes eróticos, em outra, são desviadas para fora, em forma de agressão, e em grande parte continuam a atuar de “modo desimpedido” internamente no sujeito, circulando sob a forma de tendência à agressão e à destruição, acumulando-se assim no superego como sentimento de culpa. Caracteriza tal pulsão como de natureza primária e por isso regressiva, cuja meta seria a de dissolver o sentido das representações. Neste ponto, é importante ressaltar que trata-se de uma questão que extrapola o elemento quantitativo no que tange ao controle da carga de tensão com a qual se ocupa a pulsão, visto que há tensões que são sentidas como prazerosas, bem como distensões percebidas como desprazerosas.


Em O problema econômico do masoquismo, 1924, Freud inclui os fatores qualitativos como essenciais ao manejo adequado das pulsões. Neste mesmo texto, esclarece que há “uma pequena, mas interessante sequência de relações: o princípio de Nirvana expressa a tendência da pulsão de morte; o princípio de prazer representa sua transformação em reinvindicação da libido; e o princípio de realidade, a influência do mundo exterior”, p.106. Argumenta que nenhum desses princípios necessita destituir o outro do poder, embora não exclua a presença de conflitos inevitáveis, pois “um lado privilegia a redução quantitativa da carga de estímulos, o outro, as características qualitativas desta redução de carga, e o terceiro, um adiamento do escoamento dos estímulos acumulados, exigindo uma aceitação temporária da tensão gerada pelo desprazer”, p. 107.


Em determinados momentos de interrupção do trabalho de construção inerente a análise, Lia dizia: “Parece que tem mais coisa dentro de mim, mas eu prefiro assim... não quero ir mais”. Nestas situações, a expressão da paciente costumava mudar, abrigava um ar de estranheza, como se ela mesma quase se assustasse com algo, como se estranhasse alguma coisa. Batia o martelo e não falava mais. Logo em seguida vinha uma dor de cabeça, um mal-estar qualquer e o céu fechava novamente. Defensivamente encharcava o trabalho analítico de descrença, esvaziava-o de sentido.

Elucidando em parte a estranheza, Freud em seu artigo O estranho, 1919, mostra que esse estranho não é nada novo ou alheio, ao contrário, é algo familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo de repressão, indicando que na vida mental, o que uma vez se formou, (creio que para alívio, ou incômodo), não perece. Deveria ter permanecido oculto, mas como um lampejo, veio à luz.


No texto O ego e o id, 1923, Freud descreve a reação terapêutica negativa como produto da identificação com uma relação de amor então abandonada, referindo-se à “certeza narcísica” inerente à melancolia. Ainda neste texto, relaciona a vivência do doloroso sofrimento da melancolia com a suposição de que o objeto perdido tenha sido reconstruído no eu, ou seja, que uma carga de investimento depositada no objeto foi recolhida e substituída por uma identificação. Atribui o agravamento do sofrimento psíquico ao mandato do superego, que estabelece seu poder por ser ele mesmo o ponto onde residem as primeiras identificações e do qual emanaram as normas de moralidade advindas do complexo de Édipo. Esse mandato expressa-se então pelo sentimento inconsciente de culpa, que por sua vez gera intensa angústia, encontrando alívio via dor e sofrimento.


De acordo com Mecozzi, 2003, Freud renomeia o sentimento inconsciente de culpa de masoquismo moral, deste modo mostra que a pulsão de morte voltou-se contra o ego, que adere ao sofrimento para satisfazer a necessidade de punição. Para Mecozzi, “o ego mantém um determinado grau de sofrimento, ou seja, não é possível para o ego apropriar-se de suas conquistas, uma vez que se sente culpado, em dívida”, p.53. Em Linhas de progresso na terapia analítica, 1919, Freud relaciona a necessidade de punição com o casamento infeliz e com a dor física, ao considerar que em ambos os casos a necessidade de punição é satisfeita, uma vez que tanto a escolha de determinado parceiro, quanto uma longa doença orgânica são comumente considerados castigos advindos de punições do destino, a punição é então necessária, mesmo que não atingindo o verdadeiro culpado. Tal como os conteúdos disfarçados dos sonhos, também aqui na escolha do culpado ocorre um processo de deslocamento que satisfaz a demanda de punição. O deslocamento transfere as quantidades investidas nas representações recalcadas, de forma tal, que as mesmas manifestam-se em disfarce. Freud em Os instintos e suas vicissitudes, 1915, reconhece que existem pontos de captura da pulsão, e que estes encontram-se nas exigências provocadas pela censura, nos mecanismos de defesa contra a forca pulsional que por sua vez insiste, categoricamente, na satisfação via transformação no seu contrário, no retorno sobre o próprio sujeito e no recalque, possuidor do estatuto de excelência entre as defesas.

Em O problema econômico do masoquismo, 1924, Freud alerta-nos que via de regra, os diferentes ganhos obtidos com a permanência num estado de doença derivam de um somatório de forcas que rebelam-se contra a cura, mas que no entanto, o apaziguamento do sentimento de culpa inconsciente é o mais significativo e poderoso. Em seu percurso, Freud através do conceito de reação terapêutica negativa é conduzido a pensar sobre as resistências do superego e o masoquismo. Afirma em 1926 em Inibicões, sintomas e ansiedade, que a resistência não está vinculada apenas ao ego e a seus mecanismos de defesa, mas também a efeitos de resistência do superego, capazes de desafiar todo o processo analítico, bem como as modificações dele advindas. É possível afirmar que a reação terapêutica negativa surge à medida que a análise progride e o sujeito piora.


Segundo Mecozzi 2003, estende-se um paradoxo, pois a interpretação faz agravar a sintomatologia, algo se opõe à melhora, que é experimentada pelo analisando como um perigo, uma vez que implica a vivência de sentimentos de culpa e ansiedades depressivas intoleráveis. Faz-se necessário lembrar que a compulsão à repetição denota a insistência de algo recalcado que retorna, corroborando uma das associações de Freud quando denuncia que o analisando atua na transferência exatamente aquilo que esquece. Mecozzi, em 2003, quando pensa no processo de compulsão à repetição ressalta que nessa repetição “há um fato novo que insiste em experiências ignoradas do passado, as quais não incluem a possibilidade de prazer ou dele independem. A idéia do destino inevitável, do reconhecimento de algo que não pode ser impedido, mostra que algo é ignorado e não apenas esquecido, a repetição revela e implica um saber ignorado”, p.43.


Em seu texto O mal-estar na civilização de 1929, Freud ressalta a idéia que as manifestações de Eros seriam mais visíveis e bastante ruidosas, podendo-se presumir que o instinto de morte poderia “operar silenciosamente dentro do organismo, no sentido de sua destruicão”, p.123. Em Lia, esta operação destrutiva parecia assumir um tom estridente, à medida que a destruição surgia macica, visceral, alterando seus órgãos e funções, debilitando-a justamente, e creio, não coincidentemente, ao período que seu médico a persuadia ao caminho do transplante (“Quando ela estava decidida a transplantar, vem essa novidade de tumor- silêncio- ao que tudo indica é maligno, nesses anos todos nunca vi uma sucessão de coisas ruins tão grande”...).

Freud afirma em 1924, que “não devemos nos espantar em ouvir que, sob certas circunstâncias, o sadismo, ou pulsão de destruição, projetado e voltado para fora, poderá novamente ser reintrojetado, regredindo assim à sua antiga condição e resultando, então, em um masoquismo secundário que se somaria ao masoquismo original”, p. 110. Segue dizendo que algo acontece para que a agressividade seja então introjetada, internalizada, afirmando que ela é na realidade, enviada de volta ao lugar de onde proveio, o próprio ego. E neste ponto, uma parcela do próprio ego, se coloca contra ele mesmo, como superego ou consciência, e a tensão provocada entre o cruel superego e o ego, que a ele acha-se sujeito, traduz-se em sentimento de culpa e que por isto, aguarda punição. Em outras palavras o que ocorre é o redirecionamento do sadismo contra o próprio sujeito, impedindo que grande parte dos componentes pulsionais destrutivos sejam utilizados no mundo.


Em seu texto O mal-estar na civilização de 1930, Freud articula uma reflexão interessante sobre aquilo que define como o propósito da vida, afirmando que esta é regida pelo “programa do princípio do prazer”. Continua, afirmando que “quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão somente um sentimento de contentamento tênue. Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas. Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar... todo sofrimento nada mais é do que sensação; só existe na medida em que o sentimos, e só o sentimos como consequência de certos modos pelos quais estamos regulados”, p.85.

De acordo com Mecozzi, 2003, a psicanálise reconhece e rememora como condição para a autonomia do indivíduo uma série de separações – nascimento, desmame, frustração e castração – como operações que organizam a singularização. Segue, citando Freud em sua observação de que a “sublimação é o contraponto da perda, uma vez que tece uma saída, uma outra via de acesso à satisfação da mocão pulsional que visa ao objeto primário de amor, ou seja, a mãe imaginária, absoluta e macica. A sublimação é, portanto, movimento de desligamento e desfusão desse objeto primário, abrigo de uma indiferenciacão macica, ponto situado além do princípio de prazer, lá onde só há dor e o sujeito entrega-se ao negativo ou a uma relação secreta e apaixonada com essa mãe arcaica, amada-odiada de maneira igualmente desmedida... Assim, a reação terapêutica negativa é não querer perder essa mãe fálica, é não poder renunciar a ela”, p.57

Pensando na história de Lia e sua mãe, “distante e fria”, que segundo a paciente nada parecia atingi-la, existia um ódio pela identificação com este objeto distante, faltoso? Lia, também parecia distante, em alguns momentos parecia que de fato nada a atingia, até mesmo a expressão facial das duas era a mesma, e incrivelmente, à medida que Lia debilitava-se clinicamente, mais parecida com a mãe, ela se tornava. O ódio advindo de tal identificação encenava-se no palco analítico, impossibilitando que o trabalho de luto pelo objeto perdido fosse feito, justamente por parecer impossível desidentificar-se dele. Mecozzi, 2003, refere-se à concepção de Freud sobre a melancolia, quando caracteriza a mesma como uma forma patológica do luto pelo objeto perdido, em que ao invés de desinvestir neste objeto, o sujeito o investe ainda mais, a ponto de incorporá-lo psiquicamente por meio da identificação, na tentativa de um resgate pela fusão de seu ego com tal objeto ou com parte dele. Perpetuando o sofrimento, a repetição persiste para que o sujeito não recorde.


E o pai? Nas lembranças de Lia era um pai doce, carinhoso, atento, amoroso. Nenhuma menção a um defeito, a uma lembrança que a desapontara, nenhuma falta cometida por esse pai. Só faltou, segundo palavras da filha, quando morreu. Em Lembrancas encobridoras, 1899, Freud pensando nas recordações infantis, diz que tais lembranças “nos mostram nossos primeiros anos não como eles foram, mas tal como apareceram nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas”, p.287. Uma das últimas falas de Lia à uma funcionária da clínica ao lhe desejar boa sorte em sua cirurgia, foi: “Hoje é dia três, se não der, domingo eu vou passar o dia dos pais com o meu pai” (sorriu chorando, comumente fazia isto). Se não der, era, se eu morrer. Lia morreu no dia seguinte, num final de tarde de uma sexta-feira nublada. Na unidade de terapia intensiva (U.T.I), Lia não perdeu a consciência em momento algum. Talvez fosse de se esperar. Lia chorava muito, chorava, chorava. Lágrimas-nuvem? Lágrimas-encontro? Lágrimas-medo? Lia conseguiu falar, conseguiu no fim pedir ajuda. De que ajuda ela falava? Ajuda para viver? Para morrer? Mais um ponto de interrogação deixado por sua fala, por suas lágrimas.


Quanto ao conceito de pulsão, Mecozzi, 2003, salienta ser o mesmo um conceito-limite entre o somático e o psíquico, e sua atividade só é percebida psiquicamente, depois de ser convertida em palavras, idéias, imagens, fantasias e linguagem. Nesse sentido, a pulsão é presença do corpo na alma, num ponto em que estes se articulam, por meio da representação. Aqui nota-se como fundamental a relação do princípio de prazer aos dois tipos de pulsão que funcionam como forcas reguladoras da vida. Diz-nos Freud em 1924, que no âmbito psicanalítico, devemos supor que, de algum modo, os dois tipos de pulsão encontram-se intensa e amplamente “misturados e amalgamados” em variadas proporções. Assim, não existiriam pulsões de morte ou de vida puras, e sim combinadas em diversas magnitudes.


Em O problema econômico do masoquismo, 1924, Freud propõe não mais atribuir ao princípio do prazer apenas a função de guardião da vida psíquica, mas sim ampliando sua função para o guardião da vida propriamente dita.

Partindo destas elaborações, é possível pensar que estaríamos diante de uma ameaça de morte psíquica, provocada por uma pulsão de morte ancorada em nível psíquico, impedindo o surgimento de representações? Até que ponto esse psíquico morto-vivo levaria os limites do corpo? Até que ponto a vida pode resistir onde não há simbolização?


Mecozzi, 2003, nos diz que “ainda que a transferência possa, na maioria das vezes, garantir a continuidade, apesar do sofrimento, há feridas realmente insuportáveis, e, por isso, a análise é trabalho de luto que nem todos frequentam por longo tempo, ou pelo tempo suficiente, para que algo efetivamente mude”, p. 96. A análise é, sobretudo, uma atividade que se baseia no pensar, pressupondo um trabalho que requer esforço na tentativa de representar a forca da pulsão para a construção de algum sentido. Mecozzi articula sabiamente a reação terapêutica negativa a esse processo do pensar, dizendo-nos que “cabe ressaltar que a reação terapêutica negativa é uma forma de racionalização defensiva que impede o pensamento estimulado pela análise, se esse último ameaça promover mudança”, p.143, e bem sabemos que toda mudança, implicará em alguma forma de dor psíquica. Diante desta dor, provocada pelo despertar de determinados afetos, o que toma a cena na situação analítica é uma franca negatividade lancada pelo sujeito-analisando. O afeto então permanece sem nome, sem palavra, sem sentido.


Se o par analítico tivesse acontecido entre Lia e outro analista, o desfecho teria sido o mesmo? Esta é uma outra questão advinda da experiência da analista diante do impacto provocado pela intensidade da forca pulsional. Questão que pede mais que resposta, pede pensamento.


Algumas questões foram passíveis de alguma elucidação ao longo da execução deste trabalho, outras de fato persistirão na clínica. Outras serão enriquecidas pelo tempo, pelo fazer e pelas buscas da analista. E porque não dizer do trabalho de luto em andamento, proporcionado, sobretudo pelo tecer destas linhas. Tecer produtivo pessoalmente, mas também penoso, que não se permite ser menos franco, ao mostrar-se imerso neste instante de construcão em que trabalho e emoção estiveram presentes em cada página.


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