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Autor: Jomar Cleison Rezende


Desconforto visual, piscar excessivamente os olhos diante de luz intensa, ardência, lacrimejamento, e dor ocular são alguns dos sinais de fotofobia.



Fotofobia é o nome dado a sensibilidade excessiva à claridade e a luz solar. De acordo com o oftalmologista Jomar Rezende, as células fotossensíveis da retina são hiperestimuladas pelo excesso de luz, provocando desconforto visual e rejeição à luminosidade. “Pode ocorrer em olhos normais e naqueles com patologia, principalmente doenças na córnea e anormalidades pupilares. Essas anomalias podem ser ceratites, alergias, infecções, olho seco, midríase (pupila dilatada), aniridia (ausência da íris) e cicatrizes”, diz.


A fotossensibilidade provoca desconforto visual, piscar excessivo e fechamento do olho na luz intensa, chegando ao blefaroespasmo (contração involuntária das pálpebras). Além desses, ardência, sensação de areia nos olhos, lacrimejamento e dor ocular podem estar presentes quando associadas a uma doença ocular. As fontes de luminosidade são as luzes solar, fluorescente, incandescente, chamas de velas ou incêndios. As pessoas que tentam manter os olhos abertos notam um excessivo lacrimejamento. A fotofobia pode surgir em qualquer pessoa, independente da idade, atacando principalmente as de olhos e peles mais claras. Esses indivíduos possuem maior disposição para a sensibilidade ao excesso de luz.


Quando há uma patologia ocular, esta deve ser tratada o mais rápido possível. Para olhos de cores mais escuras, cabe a proteção perante a incidência da radiaçãoo solar, com lentes fotossensíveis. Deve-se ter cuidado com as lentes de contato. A manutenção delas é essencial para evitar a fotofobia. É preciso fazer higiene adequada das lentes todos os dias e evitar usá-las horas a fio.


Para combater o desconforto causado pela fotossensibilidade, Dr. Jomar Rezende aconselha procurar um oftalmologista. Ele orientará sobre as melhores alternativas, principalmente no que tange ao exame completo dos olhos.


Quando a fotofobia não é causada por doença ocular, é recomendável usar óculos escuros, lentes fotocromáticas ou polarizadas e lentes de contato filtrantes.

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Autora: Viviane Evangelista de Sousa


De olhos estatelados, fixos na analista, Lia chora. Ainda não sei ao certo o que dizia aquele choro, nem tão pouco sei exatamente o que ele levava.

No momento, a imagem de um dia ensolarado constrói-se em meus pensamentos. Daquele céu que exibe um sol quente e amarelo, porém, derepente, uma nuvem grande, poderosa, invade o cenário, varre o sol e pronto. O que se esperava do tal dia ensolarado, foi-se. Agora por um bom tempo será somente nuvem. Chove um tanto, depois passa e mantém-se a nuvem.


Era assim com Lia, as lágrimas-nuvem levavam toda a sua fala, não havia mais som, sem palavras. E em suas repetidas finalizações em tom bem baixinho, quase que em segredo, Lia dizia: “Eu não quero falar mais não, depois... está tudo bem”.


A escolha deste caso inspirada pela clínica se deu através de um percurso de quase seis anos de acompanhamento da paciente Lia, que faleceu em seis de agosto deste mesmo ano, aos 29 anos de idade, após uma cirurgia que teve por objetivo retirar material para biópsia, para análise. Era preciso análise. História que mobilizou na analista o intragável sentimento de inutilidade, fracasso. E nesse palco algumas questões foram surgindo e as já existentes intensificaram-se.


Porque a cada melhora Lia desistia do trabalho analítico? Porque a cada movimento de busca de um conhecimento dela mesma, seu corpo piorava? Porque “distrair-se” com aquele corpo falando dele para a analista, porém recusando-se a pensar esse corpo como algo mais? Porque evitar a construção de novos sentidos? Afastava-se de toda possibilidade de conhecimento e reconhecimento de seu mundo, e diante das tentativas da analista de prosseguimento do trabalho, Lia parecia sentir-se violada. Em Lia, as “boas” notícias do ponto de vista médico (a melhora dos resultados dos exames, repetidos por rotina mensalmente; retirada de medicamentos; alta de algum outro especialista) repercutiam através de uma indiscreta tristeza e desapontamento. Assim também acontecia com os movimentos de avanço indicativos de algum crescimento, de alguma mudança, de algo valioso na análise. Lia renovava seu sofrimento transbordando-o para o corpo. E tudo recomeçava, faltava às sessões, recusava-se a falar, as lágrimas-nuvem entravam em cena, os exames clínicos também pioravam.

Sobre Lia e seu tratamento.


Lia deu início às sessões de *hemodiálise no ano de 2004, após o diagnóstico de *Insuficiência Renal Crônica (I.R.C.). A causa primária de seu problema renal foi uma doença de origem autoimune chamada *Glomerulonefrite rapidamente progressiva. Lia era a filha mais velha de uma prole de três, os outros dois são homens com diferença de aproximadamente dois anos entre os três. Relatava uma ligação muito forte com seu pai, que havia falecido quatro anos antes de Lia apresentar os primeiros sintomas de I.R.C..


O pai também falecera por implicações de doença renal crônica, no entanto em seu caso o tratamento hemodialítico não havia sido implementado. Não houve tempo.

Lia fazia três sessões de hemodiálise semanalmente, embora comparecesse à clínica quase todos os dias, uma vez que a considerava sua casa. Ao longo desses anos de tratamento desenvolveu uma relação transferencial intensa com seu médico, que também havia cuidado de seu pai. Freud traz à luz em O problema econômico do masoquismo, 1924, que no decorrer da evolução infantil, ocorre uma progressiva libertação da influência parental, e aos pais se seguem “substitutos” por eles suscitados, que de certo modo tornam-se modelos de autoridade. Lia atribuía à figura de seu médico poderes extremos, carregados libidinalmente. Era atendida formalmente pela analista uma vez por semana (e em alguns momentos que não eram de hemodiálise chegava com algum mal-estar na clínica, sendo também atendida pela analista).

Em 2004, meses antes de descobrir a insuficiência renal formou-se em Administracão de Empresas. Apesar da falta do pai, dizia-se feliz com a formatura e cheia de projetos. Após o início da hemodiálise desinveste de libido seus projetos de trabalho, pós-graduacão, namoro, e até mesmo o transplante renal desejado pela grande maioria dos pacientes não a interessava. Parecia romper com os objetos que lembravam vida.

Relatava uma boa relação com os irmãos, apesar de alguns conflitos que dizia serem “normais”. Quanto à mãe, sentia-a distante e fria a maior parte do tempo, dizendo que a mesma nunca demonstrava carinho e interesse por sua vida, ao contrário do pai descrito como amoroso, carinhoso, atento.


Segundo Gomes, em seu prefácio à obra de Mecozzi, 2003, “A tendência humana de perpetuar situações de sofrimento e de nelas voltar a incorrer, após consideráveis esforços para a melhoria e a reconstrução de condições mais satisfatórias de vida, verifica-se amiúde não apenas nos consultórios psicológicos, como também no cotidiano, bastando para isso que o observador esteja atento e interessado nos demais seres humanos ao seu redor”, p.9. Continua dizendo que este processo não refere-se a “qualquer mal-estar psíquico”, mas sim, a uma certa “impulsão à negatividade, à falta, à perdição e ao fracasso”. Segue descrevendo tais pessoas como sensíveis, capazes, talentosas, mas que no entanto retrocedem em seus anseios vitais “como que magnetizados pelas profundezas e abismos mortíferos”. Ressalta que quando ocorre a remissão de sintomas ou de uma aparente cura (grifo meu), “ressurgem e possuem-nas as mais incapacitantes inibições e atitudes auto-lesivas”. Nestes casos, a atividade auto-lesiva ou autodestrutiva apresenta-se como um movimento interno de desinvestimento e desestruturação das funções do ego e de seus investimentos objetais.


O fenômeno da reação terapêutica negativa foi reconhecido por Freud em 1919, quando detectou peculiaridades da expressão de ruptura do vínculo analítico; ruptura esta incontornável e seguida aos avanços da análise. Refere-se a esses pacientes, em seu texto O ego e o id, 1923, como pessoas que se comportam de forma bastante peculiar. “Se lhes damos esperanças e demonstramos satisfação com o progresso do tratamento, parecem ficar insatisfeitos e, frequentemente, logram piorar seu estado... toda resolução parcial que produziria uma melhora, ou uma suspensão sintomática temporária em outros pacientes, causa aqui uma intensificação momentânea do sofrimento. Em vez de melhorarem, essas pessoas pioram... o que está em jogo é um sentimento de culpa que só se apazigua no estar doente e que não quer, de modo algum, renunciar ao castigo do sofrimento... esse sentimento de culpa se expressa somente na forma de uma resistência tenaz contra o restabelecimento”, p. 57. Aqui parece estar-se diante de algo irrepresentável para o paciente, que de acordo com Mecozzi, 2003, reflete-se na inutilidade de qualquer tentativa do analista de interpretação, que pouco pode contar com as lembranças do paciente e associações livres. Uma vez sentida a mobilização interna, provocada pela interpretação, o ego do analisando trava uma luta para excluí-la de seu mundo psíquico, na tentativa de expulsar toda representação que o faca pensar em algo novo.


Freud em O ego e o id, 1923 diz que “é preciso considerar a consciência como sendo apenas uma das qualidades do psíquico e lembrar que diversas outras qualidades podem, ou não, somar-se a ela”, p. 28. Prossegue acrescentando que, ao lidar com experiências nas quais a dinâmica psíquica tem um papel importante, constata-se, obrigatoriamente, que existem processos psíquicos, que, embora não se tornem conscientes, são intensos a ponto de produzirem repercussões que afetam significativamente a vida psíquica do sujeito. Neste ponto reconhece-se que o elemento responsável por manter tais processos psíquicos fora da consciência é o recalque que manifesta-se como resistência. E é exatamente com aquilo que o recalque colocou de lado que o sujeito terá que se confrontar durante a análise. Nesse mesmo texto, Freud acrescenta que “uma importante tarefa da análise é vencer a resistência que o eu tem em entrar em contato, tomar conhecimento, e se ocupar do recalcado... sempre que suas associações tendem a se aproximar do recalcado, ele não mais consegue prosseguir com a cadeia associativa”, p. 31. Era assim com Lia; em determinados pontos de suas associações, erguia-se uma barreira.


Quanto às pulsões de morte, Freud em 1923, observa que as mesmas são submetidas a processos diferentes. Em parte, tornam-se inofensivas quando mescladas aos componentes eróticos, em outra, são desviadas para fora, em forma de agressão, e em grande parte continuam a atuar de “modo desimpedido” internamente no sujeito, circulando sob a forma de tendência à agressão e à destruição, acumulando-se assim no superego como sentimento de culpa. Caracteriza tal pulsão como de natureza primária e por isso regressiva, cuja meta seria a de dissolver o sentido das representações. Neste ponto, é importante ressaltar que trata-se de uma questão que extrapola o elemento quantitativo no que tange ao controle da carga de tensão com a qual se ocupa a pulsão, visto que há tensões que são sentidas como prazerosas, bem como distensões percebidas como desprazerosas.


Em O problema econômico do masoquismo, 1924, Freud inclui os fatores qualitativos como essenciais ao manejo adequado das pulsões. Neste mesmo texto, esclarece que há “uma pequena, mas interessante sequência de relações: o princípio de Nirvana expressa a tendência da pulsão de morte; o princípio de prazer representa sua transformação em reinvindicação da libido; e o princípio de realidade, a influência do mundo exterior”, p.106. Argumenta que nenhum desses princípios necessita destituir o outro do poder, embora não exclua a presença de conflitos inevitáveis, pois “um lado privilegia a redução quantitativa da carga de estímulos, o outro, as características qualitativas desta redução de carga, e o terceiro, um adiamento do escoamento dos estímulos acumulados, exigindo uma aceitação temporária da tensão gerada pelo desprazer”, p. 107.


Em determinados momentos de interrupção do trabalho de construção inerente a análise, Lia dizia: “Parece que tem mais coisa dentro de mim, mas eu prefiro assim... não quero ir mais”. Nestas situações, a expressão da paciente costumava mudar, abrigava um ar de estranheza, como se ela mesma quase se assustasse com algo, como se estranhasse alguma coisa. Batia o martelo e não falava mais. Logo em seguida vinha uma dor de cabeça, um mal-estar qualquer e o céu fechava novamente. Defensivamente encharcava o trabalho analítico de descrença, esvaziava-o de sentido.

Elucidando em parte a estranheza, Freud em seu artigo O estranho, 1919, mostra que esse estranho não é nada novo ou alheio, ao contrário, é algo familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo de repressão, indicando que na vida mental, o que uma vez se formou, (creio que para alívio, ou incômodo), não perece. Deveria ter permanecido oculto, mas como um lampejo, veio à luz.


No texto O ego e o id, 1923, Freud descreve a reação terapêutica negativa como produto da identificação com uma relação de amor então abandonada, referindo-se à “certeza narcísica” inerente à melancolia. Ainda neste texto, relaciona a vivência do doloroso sofrimento da melancolia com a suposição de que o objeto perdido tenha sido reconstruído no eu, ou seja, que uma carga de investimento depositada no objeto foi recolhida e substituída por uma identificação. Atribui o agravamento do sofrimento psíquico ao mandato do superego, que estabelece seu poder por ser ele mesmo o ponto onde residem as primeiras identificações e do qual emanaram as normas de moralidade advindas do complexo de Édipo. Esse mandato expressa-se então pelo sentimento inconsciente de culpa, que por sua vez gera intensa angústia, encontrando alívio via dor e sofrimento.


De acordo com Mecozzi, 2003, Freud renomeia o sentimento inconsciente de culpa de masoquismo moral, deste modo mostra que a pulsão de morte voltou-se contra o ego, que adere ao sofrimento para satisfazer a necessidade de punição. Para Mecozzi, “o ego mantém um determinado grau de sofrimento, ou seja, não é possível para o ego apropriar-se de suas conquistas, uma vez que se sente culpado, em dívida”, p.53. Em Linhas de progresso na terapia analítica, 1919, Freud relaciona a necessidade de punição com o casamento infeliz e com a dor física, ao considerar que em ambos os casos a necessidade de punição é satisfeita, uma vez que tanto a escolha de determinado parceiro, quanto uma longa doença orgânica são comumente considerados castigos advindos de punições do destino, a punição é então necessária, mesmo que não atingindo o verdadeiro culpado. Tal como os conteúdos disfarçados dos sonhos, também aqui na escolha do culpado ocorre um processo de deslocamento que satisfaz a demanda de punição. O deslocamento transfere as quantidades investidas nas representações recalcadas, de forma tal, que as mesmas manifestam-se em disfarce. Freud em Os instintos e suas vicissitudes, 1915, reconhece que existem pontos de captura da pulsão, e que estes encontram-se nas exigências provocadas pela censura, nos mecanismos de defesa contra a forca pulsional que por sua vez insiste, categoricamente, na satisfação via transformação no seu contrário, no retorno sobre o próprio sujeito e no recalque, possuidor do estatuto de excelência entre as defesas.

Em O problema econômico do masoquismo, 1924, Freud alerta-nos que via de regra, os diferentes ganhos obtidos com a permanência num estado de doença derivam de um somatório de forcas que rebelam-se contra a cura, mas que no entanto, o apaziguamento do sentimento de culpa inconsciente é o mais significativo e poderoso. Em seu percurso, Freud através do conceito de reação terapêutica negativa é conduzido a pensar sobre as resistências do superego e o masoquismo. Afirma em 1926 em Inibicões, sintomas e ansiedade, que a resistência não está vinculada apenas ao ego e a seus mecanismos de defesa, mas também a efeitos de resistência do superego, capazes de desafiar todo o processo analítico, bem como as modificações dele advindas. É possível afirmar que a reação terapêutica negativa surge à medida que a análise progride e o sujeito piora.


Segundo Mecozzi 2003, estende-se um paradoxo, pois a interpretação faz agravar a sintomatologia, algo se opõe à melhora, que é experimentada pelo analisando como um perigo, uma vez que implica a vivência de sentimentos de culpa e ansiedades depressivas intoleráveis. Faz-se necessário lembrar que a compulsão à repetição denota a insistência de algo recalcado que retorna, corroborando uma das associações de Freud quando denuncia que o analisando atua na transferência exatamente aquilo que esquece. Mecozzi, em 2003, quando pensa no processo de compulsão à repetição ressalta que nessa repetição “há um fato novo que insiste em experiências ignoradas do passado, as quais não incluem a possibilidade de prazer ou dele independem. A idéia do destino inevitável, do reconhecimento de algo que não pode ser impedido, mostra que algo é ignorado e não apenas esquecido, a repetição revela e implica um saber ignorado”, p.43.


Em seu texto O mal-estar na civilização de 1929, Freud ressalta a idéia que as manifestações de Eros seriam mais visíveis e bastante ruidosas, podendo-se presumir que o instinto de morte poderia “operar silenciosamente dentro do organismo, no sentido de sua destruicão”, p.123. Em Lia, esta operação destrutiva parecia assumir um tom estridente, à medida que a destruição surgia macica, visceral, alterando seus órgãos e funções, debilitando-a justamente, e creio, não coincidentemente, ao período que seu médico a persuadia ao caminho do transplante (“Quando ela estava decidida a transplantar, vem essa novidade de tumor- silêncio- ao que tudo indica é maligno, nesses anos todos nunca vi uma sucessão de coisas ruins tão grande”...).

Freud afirma em 1924, que “não devemos nos espantar em ouvir que, sob certas circunstâncias, o sadismo, ou pulsão de destruição, projetado e voltado para fora, poderá novamente ser reintrojetado, regredindo assim à sua antiga condição e resultando, então, em um masoquismo secundário que se somaria ao masoquismo original”, p. 110. Segue dizendo que algo acontece para que a agressividade seja então introjetada, internalizada, afirmando que ela é na realidade, enviada de volta ao lugar de onde proveio, o próprio ego. E neste ponto, uma parcela do próprio ego, se coloca contra ele mesmo, como superego ou consciência, e a tensão provocada entre o cruel superego e o ego, que a ele acha-se sujeito, traduz-se em sentimento de culpa e que por isto, aguarda punição. Em outras palavras o que ocorre é o redirecionamento do sadismo contra o próprio sujeito, impedindo que grande parte dos componentes pulsionais destrutivos sejam utilizados no mundo.


Em seu texto O mal-estar na civilização de 1930, Freud articula uma reflexão interessante sobre aquilo que define como o propósito da vida, afirmando que esta é regida pelo “programa do princípio do prazer”. Continua, afirmando que “quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão somente um sentimento de contentamento tênue. Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas. Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar... todo sofrimento nada mais é do que sensação; só existe na medida em que o sentimos, e só o sentimos como consequência de certos modos pelos quais estamos regulados”, p.85.

De acordo com Mecozzi, 2003, a psicanálise reconhece e rememora como condição para a autonomia do indivíduo uma série de separações – nascimento, desmame, frustração e castração – como operações que organizam a singularização. Segue, citando Freud em sua observação de que a “sublimação é o contraponto da perda, uma vez que tece uma saída, uma outra via de acesso à satisfação da mocão pulsional que visa ao objeto primário de amor, ou seja, a mãe imaginária, absoluta e macica. A sublimação é, portanto, movimento de desligamento e desfusão desse objeto primário, abrigo de uma indiferenciacão macica, ponto situado além do princípio de prazer, lá onde só há dor e o sujeito entrega-se ao negativo ou a uma relação secreta e apaixonada com essa mãe arcaica, amada-odiada de maneira igualmente desmedida... Assim, a reação terapêutica negativa é não querer perder essa mãe fálica, é não poder renunciar a ela”, p.57

Pensando na história de Lia e sua mãe, “distante e fria”, que segundo a paciente nada parecia atingi-la, existia um ódio pela identificação com este objeto distante, faltoso? Lia, também parecia distante, em alguns momentos parecia que de fato nada a atingia, até mesmo a expressão facial das duas era a mesma, e incrivelmente, à medida que Lia debilitava-se clinicamente, mais parecida com a mãe, ela se tornava. O ódio advindo de tal identificação encenava-se no palco analítico, impossibilitando que o trabalho de luto pelo objeto perdido fosse feito, justamente por parecer impossível desidentificar-se dele. Mecozzi, 2003, refere-se à concepção de Freud sobre a melancolia, quando caracteriza a mesma como uma forma patológica do luto pelo objeto perdido, em que ao invés de desinvestir neste objeto, o sujeito o investe ainda mais, a ponto de incorporá-lo psiquicamente por meio da identificação, na tentativa de um resgate pela fusão de seu ego com tal objeto ou com parte dele. Perpetuando o sofrimento, a repetição persiste para que o sujeito não recorde.


E o pai? Nas lembranças de Lia era um pai doce, carinhoso, atento, amoroso. Nenhuma menção a um defeito, a uma lembrança que a desapontara, nenhuma falta cometida por esse pai. Só faltou, segundo palavras da filha, quando morreu. Em Lembrancas encobridoras, 1899, Freud pensando nas recordações infantis, diz que tais lembranças “nos mostram nossos primeiros anos não como eles foram, mas tal como apareceram nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas”, p.287. Uma das últimas falas de Lia à uma funcionária da clínica ao lhe desejar boa sorte em sua cirurgia, foi: “Hoje é dia três, se não der, domingo eu vou passar o dia dos pais com o meu pai” (sorriu chorando, comumente fazia isto). Se não der, era, se eu morrer. Lia morreu no dia seguinte, num final de tarde de uma sexta-feira nublada. Na unidade de terapia intensiva (U.T.I), Lia não perdeu a consciência em momento algum. Talvez fosse de se esperar. Lia chorava muito, chorava, chorava. Lágrimas-nuvem? Lágrimas-encontro? Lágrimas-medo? Lia conseguiu falar, conseguiu no fim pedir ajuda. De que ajuda ela falava? Ajuda para viver? Para morrer? Mais um ponto de interrogação deixado por sua fala, por suas lágrimas.


Quanto ao conceito de pulsão, Mecozzi, 2003, salienta ser o mesmo um conceito-limite entre o somático e o psíquico, e sua atividade só é percebida psiquicamente, depois de ser convertida em palavras, idéias, imagens, fantasias e linguagem. Nesse sentido, a pulsão é presença do corpo na alma, num ponto em que estes se articulam, por meio da representação. Aqui nota-se como fundamental a relação do princípio de prazer aos dois tipos de pulsão que funcionam como forcas reguladoras da vida. Diz-nos Freud em 1924, que no âmbito psicanalítico, devemos supor que, de algum modo, os dois tipos de pulsão encontram-se intensa e amplamente “misturados e amalgamados” em variadas proporções. Assim, não existiriam pulsões de morte ou de vida puras, e sim combinadas em diversas magnitudes.


Em O problema econômico do masoquismo, 1924, Freud propõe não mais atribuir ao princípio do prazer apenas a função de guardião da vida psíquica, mas sim ampliando sua função para o guardião da vida propriamente dita.

Partindo destas elaborações, é possível pensar que estaríamos diante de uma ameaça de morte psíquica, provocada por uma pulsão de morte ancorada em nível psíquico, impedindo o surgimento de representações? Até que ponto esse psíquico morto-vivo levaria os limites do corpo? Até que ponto a vida pode resistir onde não há simbolização?


Mecozzi, 2003, nos diz que “ainda que a transferência possa, na maioria das vezes, garantir a continuidade, apesar do sofrimento, há feridas realmente insuportáveis, e, por isso, a análise é trabalho de luto que nem todos frequentam por longo tempo, ou pelo tempo suficiente, para que algo efetivamente mude”, p. 96. A análise é, sobretudo, uma atividade que se baseia no pensar, pressupondo um trabalho que requer esforço na tentativa de representar a forca da pulsão para a construção de algum sentido. Mecozzi articula sabiamente a reação terapêutica negativa a esse processo do pensar, dizendo-nos que “cabe ressaltar que a reação terapêutica negativa é uma forma de racionalização defensiva que impede o pensamento estimulado pela análise, se esse último ameaça promover mudança”, p.143, e bem sabemos que toda mudança, implicará em alguma forma de dor psíquica. Diante desta dor, provocada pelo despertar de determinados afetos, o que toma a cena na situação analítica é uma franca negatividade lancada pelo sujeito-analisando. O afeto então permanece sem nome, sem palavra, sem sentido.


Se o par analítico tivesse acontecido entre Lia e outro analista, o desfecho teria sido o mesmo? Esta é uma outra questão advinda da experiência da analista diante do impacto provocado pela intensidade da forca pulsional. Questão que pede mais que resposta, pede pensamento.


Algumas questões foram passíveis de alguma elucidação ao longo da execução deste trabalho, outras de fato persistirão na clínica. Outras serão enriquecidas pelo tempo, pelo fazer e pelas buscas da analista. E porque não dizer do trabalho de luto em andamento, proporcionado, sobretudo pelo tecer destas linhas. Tecer produtivo pessoalmente, mas também penoso, que não se permite ser menos franco, ao mostrar-se imerso neste instante de construcão em que trabalho e emoção estiveram presentes em cada página.


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Autores: Maria Amélia Dias Pereira e Rodolfo Furlan Damiano


Como professora de psicologia médica há vários anos, e como psiquiatra de um serviço de apoio aos estudantes, com contato direto com os alunos de medicina, sempre convivi com o sofrimento psíquico dos estudantes. Crises entre os estudantes de medicina é uma constante e, cada vez mais frequente, temos visto os jovens aprendizes adoecerem. Depressões, quadros de ansiedade e estresse são os transtornos mentais mais comuns.



A literatura nessa área é ampla e várias são as propostas para entendermos a razão de uma maior prevalência de estresse, depressão e de transtornos mentais menores entre os estudantes de medicina.


Neste capítulo, abordaremos o que é saúde mental, para depois imergirmos no campo do adoecimento e sofrimento psíquico. Após isso, e de grande relevância, faremos uma distinção entre o que é um sofrimento psíquico e o que é um adoecimento mental; o que é o estresse, que faz parte da vida, natural e às vezes saudável, e o que é o Burnout. O que é tristeza e o que é depressão. Compreender as vicissitudes inerentes ao curso médico e as diferentes etapas pelas quais passa o estudante e as atuais mudanças decorrentes da pós-modernidade se torna necessário para podermos atuar nessa área tão complexa e abrangente.


Falar em saúde mental é falar da vida, de equilíbrio emocional, de qualidade de vida, de felicidade, de realização, de vontade de viver e de se relacionar. Não há uma definição de saúde mental pela OMS, mas com certeza é mais do que a ausência de doenças mentais, é estar de bem consigo e com os outros, é reconhecer seus limites e buscar ajuda quando necessário, além de saber lidar com as próprias emoções. Tudo interfere na saúde mental, e para entendê-la no contexto médico acadêmico vamos abordar inicialmente o que seriam as crises normais dos estudantes de medicina ao iniciarem o curso.


Em primeiro lugar, o aluno de medicina já tem algumas características psíquicas próprias que o permitem adentrar em um dos vestibulares mais concorridos do Brasil: são inteligentes, persistentes, decididos e conseguem (ou pelo menos em algum momento conseguiram) conter sua ansiedade para serem testados em uma avaliação. Geralmente são pessoas perfeccionistas e que esperam muito de si mesmas, muitas vezes com uma autocobrança excessiva que pode levar à culpa quando não atingem os objetivos esperados. É interessante observar que justamente essas características pessoais que contribuem para levar os estudantes a uma aprovação em um processo seletivo tão difícil são também as características que propiciam o adoecer psíquico. Pessoas menos exigentes suportam melhor as frustrações e sofrem menos com as próprias falhas e insucessos.


Para conhecer quem são estes jovens e por que escolheram fazer Medicina, Millan (2005) realizou uma pesquisa na qual entrevistou 49 primeiranistas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) em 2000 e avaliou a motivação, valores e crenças desses acadêmicos de medicina. Os resultados das entrevistas mostraram que:

Quarenta por cento (40%) dos alunos optaram definitivamente pela carreira médica durante o ensino fundamental, 51,66% durante o ensino médio e apenas 8,33% tardiamente, durante o cursinho pré-vestibular.As motivações conscientes para a escolha de medicina foram: altruísmo (81,6%), curiosidade e interesse intelectual (46,9%), interesse pela relação humana (30,6%), influência de terceiros (26,5%), perfil da profissão (14,2%), tipo e local de trabalho (4%) e retorno financeiro (2%), não tendo encontrado diferenças significativas entre os gêneros.Apenas 10% dos alunos entrevistados possuíam uma imagem favorável da profissão médica atual e para 55% havia apenas aspectos desfavoráveis. Para eles, os médicos são mal remunerados, não têm tempo para o lazer e para a família, são pouco reconhecidos, há dificuldade para conseguir trabalho, muitas escolas médicas são de baixa qualidade, as condições de trabalho são ruins, há problemas nas relações com os pacientes, as condições sociais do Brasil são precárias, há muita competição entre os médicos, a profissão é estressante, a medicina esta desumanizada e há médicos com o espírito muito comercial.Em relação às dificuldades que esperavam encontrar no decorrer do curso, a mais citada foi a falta de tempo, em seguida a relação com pacientes, o excesso de matérias, dificuldades de estudo, o estresse, o exame de residência, a falta de didática dos professores e a escolha de especialidades, entre outras.A maioria dos alunos acredita que a profissão médica irá interferir em sua vida privada.Ao serem questionados quais seriam os cinco atributos necessários para alguém ser um bom médico, as respostas foram: características de personalidade (91,66%), habilitação profissional (80%), relação médico-paciente (60%), o fato de gostar da profissão (30%) e ser feliz (1,66%). Dos 55 alunos que apontaram as características de personalidade, 44 acreditam que se trata de algo que não se pode ser ensinado. Não houve diferenças significativas em relação ao gênero e todos os alunos acreditam possuir esses atributos necessários.


Analisando esses dados, Millan (2005) conclui que a carreira médica é escolhida pela maioria dos jovens ainda na fase de transição da infância para a adolescência; a grande maioria dos alunos não mostrou interesse financeiro na procura da profissão, pelo contrário, a maioria dos alunos diz que a motivação conscientes para a escolha da medicina era a vontade de ajudar os outros; apesar da maioria dos discentes ter uma imagem desfavorável sobre a profissão médica, inclusive financeira, todos optaram por exercer a medicina, mesmo que alguns sacrifícios tenham que ser realizados, como passar grande parte da vida estudando; quase a totalidade dos entrevistados considera relevante as características de personalidade do médico e a relação médico-paciente importantes para a profissão.


Observando esses dados, ao mesmo tempo em que advém o sentimento de felicidade pelas ideias que norteiam a vocação médica, também nos preocupa o fato de muitos deles terem uma imagem desfavorável da profissão médica. Muito desta visão se deve à própria formação do médico, onde o estudante passa por várias situações estressantes e violentas, algumas delas que podem deixar marcas para o resto da vida (BELLODI, 2012).


Fazendo uma análise das fases psíquicas do estudante de medicina durante a graduação, podemos dizer que ao iniciar o curso médico observamos, de um modo geral, que os estudantes passam pela fase de euforia, ou seja, uma grande alegria por ter conquistado a vaga tão desejada após anos de esforço e abnegação. Nesse início, portanto, a escola é idealizada e o aluno ganha novo status na hierarquia familiar, sentindo-se socialmente mais valorizado e fantasiando que todos os seus problemas terminaram (MILLAN et al., 1999). Nesse momento, o qual já é difícil pela mudança radical na vida desses estudantes, ocorrem os trotes universitários[1]. Podemos analisar o trote como um primeiro choque entre a idealização da nova vida e a violência que continuam os cercando, podendo levar a repercussões muito negativas na qualidade de vida e na saúde mental desses discentes.

Após a fase do encantamento inicial vem o desencanto. Os professores não correspondem ao que eram idealizados, algumas matérias são muito desinteressantes e, aparentemente, desnecessárias, a ausência de tempo livre se faz sentir de uma forma incômoda, o grande volume de conteúdo das novas disciplinas começa a pesar e as dúvidas quanto à sua real capacidade de se tornar um bom profissional surgem (PEREIRA; BARBOSA, 2013). Tudo isso leva à insegurança e ao desânimo e, para alguns, começa o questionamento da escolha. Dependendo da personalidade do estudante, de sua história de vida, de suas expectativas e de sua rede de apoio, nesse momento podem aparecer sintomas depressivos que, conforme as predisposições herdadas, podem levar à depressão.


Importante nessa hora distinguir o que é um transtorno de ajustamento com sintomas depressivos e/ou ansiosos e o que seria já um transtorno depressivo ou outro quadro psiquiátrico. Um apoio passa a ser fundamental e entendemos que este é um papel das escolas médicas. Às vezes um simples espaço em sala de aula para que esses sentimentos e emoções sejam colocados e acolhidos já pode ser suficiente para compreender e elaborar o sofrimento. Um profissional psi (psicólogo ou psiquiatra) disponível para ouvir esses alunos, de forma empática e não reducionista também seria uma boa estratégia de enfrentamento. Grupos de reflexão ou o mentoring também são outros recursos práticos uteis. Os professores ou outros profissionais que nesse momento acolherem os estudantes devem ter capacidade e formação adequada para distinguirem quem precisaria de um acompanhamento especializado ou não, pois sabemos que quando necessário, o tratamento precoce implica em um melhor prognóstico para os transtornos mentais.


No decorrer do curso médico outras crises são naturais, como no primeiro contato com os pacientes, por exemplo. Hoje, com as atuais mudanças curriculares, cada vez mais cedo o estudante de medicina começa seu contato com o paciente, o que ameniza a angústia antes tantas vezes relatada. O aluno acha que o paciente espera dele uma resposta para seu problema, e, como ele ainda é inexperiente no conhecimento técnico da medicina, sente-se inseguro e em dívida com o paciente. Às vezes o aluno sofre por achar que está importunando o paciente, que a relação está sendo desigual, pois só ele usufrui do paciente, aprendendo com ele (e nele) sem dar nada em troca. Sobre esse tema várias pesquisas já foram feitas em hospitais escolas e o que os resultados mostraram foi que os pacientes não se incomodam por serem atendidos por estudantes e por serem instrumentos de aprendizagem aos acadêmicos, pelo contrário, sentem-se úteis e felizes por poder contribuir na formação médica e elogiam a atenção e delicadeza dos jovens alunos (JARDIM et al., 2008; PÉRICO et al., 2006).


No terceiro e quarto ano do curso as experiências emocionais mais frequentemente encontradas estão relacionadas com problemas de ordem pessoal, familiar e afetiva, e as preocupações escolares deixam de ser o foco principal. Os alunos preocupam-se com a formação dos grupos de colegas, tendo medo de serem excluídos. No quarto ano o internato se aproxima e as amizades já estão formadas, o que aumenta a angústia em relação à formação dos pares e grupos durante os dois últimos anos de formação.

Finalmente a fase profissionalizante do curso, o internato, que na maioria das escolas médicas hoje têm a duração de 2 anos. Nessa fase o estudante enfrenta as angústias desencadeadas pelo acompanhamento direto do paciente, na qual já se espera que os alunos de medicina tenham adquirido algumas aptidões e conhecimentos que o possibilitam a começar a atender, prescrever e acompanhar os pacientes internados ou não. A desenvoltura e autonomia do aluno dependem muito de suas características pessoais, da capacidade de aprendizado, da segurança adquirida graças ao curso ou dos traços de personalidade. Alguns alunos após aprenderem a dar pontos durante a disciplina de técnica cirúrgica já se sentem aptos a atenderem em Pronto Socorro, fazendo suturas e outras atividades; outros passam pelo estágio obrigatório no Pronto Socorro do Hospital Escola, executam todos os procedimentos sob orientação do supervisor e, mesmo assim, não se sentem seguros para assumirem um cargo em serviço de urgência e emergência. São as variações individuais, as aptidões naturais e as carências de cada um.


Assim também ocorre em outras áreas. Durante a graduação já percebemos aqueles alunos que são “bons para ouvir”, que têm tolerância e paciência com os pacientes mais difíceis ou que têm uma grande empatia e permitem que os pacientes se abram mais e se sintam confiantes. Outros já têm mais o “perfil do cirurgião”, gostam de procedimentos mais invasivos, de intervenções mais radicais e preferem não entrar em muitos detalhes da vida psicoemocional do paciente. Enfim, é essa grande diversidade da medicina que permite que pessoas tão diferentes possam exercer a mesma profissão, tendo lugar para todos, cada um atuando segundo suas características e seus dons pessoais.


É frequente que durante o internato o estudante se sinta inseguro diante de tanta responsabilidade e perceba as limitações da profissão. O paciente não corresponde às suas expectativas, a Instituição não oferece as condições ideais para resolver o problema do paciente, o conhecimento científico atual não é suficiente em todos os casos e ele mesmo não tem a dedicação, tolerância e prazer que imaginava ter com todos os seus pacientes. Na maioria das vezes a realidade não corresponde à prática médica idealizada. São frequentes nessa fase novos questionamentos, como qual especialidade seguir, se a profissão vale a pena, se será capaz de entrar na residência médica, entre outros. (NOGUEIRA-MARTINS, 1994).


A competição entre os colegas é outra fonte constante de sofrimento. A maioria dos alunos, acostumada com a competição do vestibular, se submete à uma busca incansável ao “currículo paralelo”, ou seja, um excesso de ligas acadêmicas, congressos, monitorias, enfim, tudo que possa melhorar o currículo e tornar o aluno com maiores chances de passar na residência médica (BENVEGNÚ; DEITOS; COPETTE, 1996; FIOROTTI et al., 2010). Tal busca afasta cada vez mais os acadêmicos da motivação altruística inicial que os fizeram optar pelo curso médico, aumentando assim o sofrimento psíquico dos mesmos em uma relação circular e viciosa.


Além dessas diferentes fases em que passam os estudantes de medicina, vale a pena ressaltar outras características do curso que são muito mobilizantes, como o contato com a morte e a impotência. É comum que uma das motivações para a escolha de medicina tenha sido o fato do aluno ter acompanhado de perto a doença de alguém da família ou dele mesmo, passando a ter o desejo de curar ou de “enfrentar” a doença. Essa era sua motivação maior e, ao se defrontar com as limitações próprias da impotência humana, fica um sentimento de frustração e de derrota, que é preciso compreender e elaborar. Lidar com nossa finitude nem sempre é fácil, principalmente em uma etapa de vida em que a onipotência própria da adolescência ainda impera (NOGUEIRA-MARTINS, 2003).


Após analisarmos algumas evidências que nos mostram como o curso médico é reconhecidamente um período de grande estresse e sobrecarga na vida de todos os estudantes, é importante compreendermos melhor qual o impacto desse estresse na qualidade de vida dos mesmos e qual a repercussão em sua saúde mental. Estudos mostram que o estresse aumenta no decorrer da graduação (FIRTH, 1986) (GUIMARÃES, 2006), e que a qualidade de vida do estudante diminui nesse período, havendo controvérsias sobre qual seria o pior momento. Em algumas pesquisas, o terceiro e quarto anos seriam os períodos com maior estresse (TEMPSKY, 2006), em outras, há uma piora gradativa culminando com a pior percepção de qualidade de vida ao final do curso médico. Alguns trabalhos identificaram quadros mais graves, podendo levar à Síndrome de Burnout. (DAHLIN; RUNESON, 2007).


E qual é a diferença entre estresse e Burnout? O estresse é a resposta do organismo aos fatores externos ou internos que quebram a homeostase do organismo, ou seja, a cada evento que mobiliza uma resposta física ou emocional uma modificação é observada no individuo para leva-lo à adaptação. Isso é necessário e saudável, o problema começa a existir quando os eventos estressores se tornam ou muito frequentes ou muito intensos, levando a adaptações contínuas, com alterações do organismo que excedem sua capacidade de recuperação, podendo levar a problemas físicos e psíquicos graves.

Baseado no conceito de estresse de Selye (1959), podemos encontrar diferentes fases do estresse:


1) Fase de Alerta – ao iniciar o contato com fatores estressores se inicia a resposta física e emocional do organismo no sentido de “correr ou lutar” que é uma resposta natural a qualquer situação identificada como situação de risco. O problema é que nosso organismo responde a esses estímulos com alterações fisiológicas que nos preparam para uma atividade que provavelmente não iremos realizar frente ao perigo que enfrentamos hoje, pois não precisaremos (ou não poderemos) correr, literalmente falando. Na hora da prova, por exemplo, que é um forte estressor no curso médico, não poderemos sair correndo, nem lutar ou brigar com o professor, então todo aquele preparo fisiológico do nosso organismo, com descarga de adrenalina, deixando o corpo mais apto ao enfrentamento (músculos mais irrigados, pupilas dilatadas, fechamento de esfíncteres, etc) não poderá nos ajudar, e pelo contrário é inútil e desgastante. Quando o estressor termina, o indivíduo sai da fase de alerta e restabelece a homeostase.

2) Fase de Resistência – quando os fatores estressores persistem é necessária uma adaptação contínua do organismo, sendo preciso aprender a conviver com os estressores. Para algumas pessoas, as agressões contínuas levam a uma desestabilidade física ou emocional que predispõe à vulnerabilidade a doenças. São sintomas dessa fase os problemas de memória, cansaço constante, maior sensibilidade, pensamentos sobre um só assunto, irritabilidade, insegurança e sintomas físicos como queimação, hipertensão arterial, problemas dermatológicos, diminuição da libido entre outros. Podemos perceber nos levantamentos realizados entre os estudantes de medicina que esses sintomas são bem frequentes, principalmente no período de finais de semestre quando se intensificam as avaliações e sobrecargas acadêmicas, diminuindo os sintomas durante as férias (GUIMARÃES,2006).


3) Fase de Exaustão – ocorre quando a resistência do indivíduo não foi suficiente para enfrentar os estressores levando o organismo a um esgotamento que se manifestará através de sintomas físicos e emocionais mais intensos e constantes e com a instalação de doenças. Para que alguém chegue a essa fase é fundamental a contribuição dos fatores pessoais hereditários e aprendidos e da predisposição física e emocional que interferem na resiliência ou na fragilidade de cada um. Resiliência é um termo oriundo da física que fala sobre a capacidade do organismo resistir às adversidades sem se deformar, ou seja, como algumas pessoas conseguem administrar e enfrentar melhor os fatores estressores inerentes à sua vida sem adoecer. Sobre esse aspecto, acreditamos ser papel das escolas médicas e dos centros de apoio aos estudantes avaliar as possibilidades de ajudar a aumentar a resiliência dos alunos, já que atualmente é impossível um curso médico sem estressores.


O conceito de Burnout surgiu especificamente ligado ao estresse ocupacional. Termo utilizado a partir da década de 70 para descrever uma síndrome que ocorria em função da atividade laboral, onde aspectos individuais associados às condições e relações no trabalho levam ao aparecimento de exaustão emocional, despersonalização e reduzida satisfação pessoal no trabalho. Um aspecto interessante de observarmos no Burnout é que ele já tem sido identificado em estudantes, já que os mesmos vivenciam situações específicas onde existem rotinas, tarefas e obrigações similares ao trabalhador comum. Esta síndrome é mais frequente nas profissões que lidam com o cuidado (profissionais de saúde, professores, etc), acometendo preferencialmente os profissionais mais idealistas e no início de sua carreira (DYRBYE et al., 2010).


Um estudo prospectivo realizado na Suécia identificou morbidades psiquiátricas clinicamente significativas e Burnout em alunos do terceiro ano de Medicina, correlacionando com características de personalidade e as condições de estudo desses mesmos alunos quando estavam no primeiro ano do curso (DAHLIN; RUNESON, 2007). Foi possível inferir que a personalidade com traços de impulsividade e a presença de depressão no primeiro ano são preditivos de Burnout e de morbidade psiquiátrica no terceiro ano. Os alunos daquele estudo passaram por uma avaliação que detectou uma prevalência de 27% deles com diagnóstico psiquiátrico, mas somente menos de um terço destes havia procurado tratamento. Uma maior autoestima baseada no desempenho foi associada ao aumento de morbidade psiquiátrica, porém não se associou a um maior índice de Burnout. Os autores concluíram que é importante dar condições e estímulo para que o aluno de Medicina identifique sintomas depressivos desde o início do curso e busque o tratamento adequado, sendo que para prevenir o Burnout intervenções individuais e organizacionais devem ser oferecidas.

Frasquilho (2005), em uma revisão descritiva das vulnerabilidades dos médicos, reforça que é imprescindível a conscientização dos riscos da profissão médica e a compreensão do estresse para prevenir o Burnout. Cuidar da própria saúde e reconhecer seus limites e necessidades são alguns dos aspectos que aparecem como dificuldades frequentes para os médicos e estudantes de Medicina. Mais uma vez, mostra a importantância de as escolas médicas oferecerem espaços para que os alunos desenvolvam uma noção de saúde para si, além de incluir atividades no currículo que valorizem a melhora da qualidade de vida dos discentes.


Entrando novamente no campo da depressão, o que inicialmente temos a dizer é que muitos dos diagnósticos de depressão e muitas das prescrições de antidepressivos estão sendo geradas sem estarmos necessariamente diante de uma patologia depressiva. Os sintomas depressivos são extremamente frequentes, como desânimo, apatia, distúrbio do sono (sonolência excessiva ou insônia), irritabilidade aumentada, indiferença afetiva, diminuição do prazer, diminuição da libido, preocupações aumentadas com a própria saúde, pessimismo, falta de energia, entre outros. Esses sintomas podem aparecer decorrentes de uma tristeza desencadeada por alguma situação de vida mais difícil (perdas, desilusões, etc.) ou desencadeados por período de sobrecarga e estresse. Dependendo da intensidade dos sintomas, da duração e da proporção motivo/consequência, podemos diagnosticar um quadro depressivo, sendo então necessário um maior acompanhamento psiquiátrico. A psicoterapia, de um modo geral, é útil em todos os casos concomitante ou não ao uso de medicamentos.

Os transtornos de ajustamento com sintomas depressivos e ansiosos são quadros frequentemente confundidos com depressão, mas mesmo que não seja indicada uma medicação, se torna necessário um acompanhamento profissional de um médico e/ou psicoterapeuta. Justamente devido a esta dificuldade de categorizar e diferenciar os quadros depressivos, temos encontrado uma discrepância nos resultados das pesquisas que abordam a prevalência de depressão nos estudantes.


Souza (2010), estudando a prevalência de depressão e ansiedade entre estudantes de Medicina de uma escola pública brasileira, identificou dois momentos de pico nos escores depressivos, um no terceiro ano do curso e o outro no último ano. O autor associa esses picos com o processo de luto, o primeiro pela perda das idealizações do início do curso, e o segundo momento relacionado ao término do curso e início da vida profissional. A ansiedade foi detectada com escores mais alto nos períodos que antecediam a depressão, interpretados como angústia que antecede uma perda. O autor concluiu que seriam crises na trajetória de “ser” médico, marcada por idealizações e pelo trabalho de luto, necessário para o amadurecimento profissional

Baldassin (2010) fez uma revisão dos estudos brasileiros sobre ansiedade e depressão no estudante de medicina, encontrando 41 artigos publicados nas bases da Biblioteca Virtual de Saúde com os descritores estudante de medicina, depressão, ansiedade, estresse e burnout. Onze estudos pesquisaram a frequência de depressão nos estudantes de medicina, encontrando uma prevalência que variou entre 8,9% a 79%; a maioria usou o Inventário de Depressão de Beck como instrumento de identificação dos sintomas, e foram basicamente cortes transversais. O resultado mostra a dificuldade dos instrumentos utilizados para diferenciar os sintomas depressivos da depressão. Já em relação à ansiedade, o instrumento mais utilizado foi o Inventário de Ansiedade de Spielberger, não havendo uniformidade nos resultados encontrados entre os 7 estudos selecionados e apresentados pelo autor.


Entre os estudos citados por Baldassin (2010), em um estudo longitudinal foi identificado um crescimento importante da ansiedade no terceiro ano do curso, comparado com o primeiro ano (72,2% e 27,8%). Para verificar estresse e Burnout a maioria das pesquisas utilizou o Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp (ISSL) e apenas um estudo, até então, havia utilizado o Malach Burnout Inventory (MBI), que seria mais específico para identificar a Síndrome de Burnout. De um modo geral os estudos confirmaram que as escolas médicas são consideradas como fortes estressores, levando os alunos a um índice de sintomas maior que o da população geral.


Os transtornos psiquiátricos menores, ou transtornos mentais menores (TMM) são considerados quadros menos graves e mais frequentes, os quais incluem as alterações de memória, dificuldade de concentração e de tomada de decisões, insônia, irritabilidade, fadiga e queixas físicas (cefaleia, tremores, sintomas gastrointestinais, entre outros). Existe um questionário que é bastante utilizado para identificar prevalência dos TMM, o SRQ-20 (Self...), que é composto de 20 perguntas, sendo 4 de sintomas físicos e 16 sobre desordens psicoemocionais; o ponto de corte para se considerar o caso como “suspeito” é 6 pontos ou mais para os homens e para mulheres 8 ou mais (cada ponto equivalendo a uma resposta “sim”).


Vários estudos foram realizados entre os estudantes para avaliar a prevalência dos TMM. Em um estudo de Cerchiari, Caetano e Faccenda (2005), a prevalência de TMM na população de estudantes universitários dos cursos de Ciência da Computação, Direito, Letras e Enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul foi estimada em 25%, destacando-se como transtorno principal os distúrbios psicossomáticos. Em outro estudo realizado na Universidade Federal do Espírito Santo, Fiorotti et al. (2010) identificaram uma alta prevalência de TMM entre os estudantes de medicina (37,1%). Em sua conclusão, o autor compara a prevalência encontrada com a de outros estudos que utilizaram o mesmo instrumento, tais como: Universidade Federal de Santa Maria (31,7%); Universidade Federal do Rio Grande do Sul (22,19%); Universidade Federal da Bahia (29,6%); Universidade Federal de Pernambuco (42,6%). O autor também cita um estudo realizado na Universidade Estadual Paulista em Botucatu, onde Lima, Domingues e Cerqueira (2006) encontraram uma prevalência para TMM de 44,7%, associando-se independentemente a: dificuldade para fazer amigos, avaliação ruim sobre desempenho escolar, pensar em abandonar o curso e não receber o apoio emocional necessário (LIMA; DOMINGUES; CERQUEIRA, 2006).


Outra vertente bastante investigada atualmente é a questão da qualidade de vida a qual utiliza questionários específicos, como o SF36 ou o WHOQOL (100 ou brief), o mais usado no nosso meio. Ao se pesquisar a qualidade de vida tira-se o enfoque na doença e passamos a valorizar a saúde e o impacto de determinadas situações (inclusive doenças) no dia-a-dia das pessoas, podendo então observar quão subjetiva é a percepção que cada um tem de sua vida. Algumas pessoas com o pouco que têm conseguem se sentirem felizes e satisfeitas com sua qualidade de vida, outras são mais exigentes e têm um olhar mais voltado para as dificuldades e faltas e, consequentemente, possuem maior percepção de seu sofrimento.


Qualidade de vida tem a ver com expectativas, com objetivos de vida, com valores, crenças e desejos, sendo modulada, também, por características de personalidade e pela presença ou ausência de equilíbrio mental. As pesquisas sobre qualidade de vida dos estudantes de medicina têm mostrado que o curso médico piora a qualidade de vida dos alunos, sendo então levantadas as variáveis que influenciam como fatores de risco ou como fatores de proteção.


Muitos trabalhos já foram publicados mostrando uma piora na qualidade de vida dos alunos durante o curso médico (ALVES et al., 2010; PARO et al., 2010; TEMPSKI; MARTINS, 2012), chegando alguns autores a relatar que a graduação médica é um perigo para a saúde de muitos estudantes (WOLF, 1994). Tempski (2008) utilizou a técnica de grupos focais em seis escolas médicas no Brasil e, após análise dos resultados, construiu um questionário específico para estes acadêmicos para avaliar a qualidade de vida (IQVEM). No mesmo estudo, em 2004, foram investigados 800 alunos de Medicina, tendo como resultado que 45,4% dos estudantes demonstraram-se insatisfeitos com o curso, afirmando que não aproveitavam a vida como gostariam, não se alimentavam bem e não cuidavam de sua saúde. A falta de tempo para relacionamentos, atividades de lazer, estudo e repouso foram descritas como os principais fatores para redução da qualidade de vida. Como conclusão a autora cita:

“melhorar a qualidade de vida no curso de medicina depende de medidas como ensinar o estudante a valorizar a vida, cuidar de sua saúde física e mental, estabelecer e manter relacionamentos, desenvolver resiliência, além de medidas institucionais como o desenvolvimento docente, supervisão em atividades práticas, oferecer oportunidade de participar de projetos de desenvolvimento social e de iniciação científica, garantir tempo livre de estudo, diminuir a competitividade, estabelecer programas de exercícios físicos, promoção de saúde, serviços de apoio e suporte ao estudante. Oferecer melhores condições de aprendizado resulta em melhoria na qualidade de vida no curso, possibilitando o estudante amadurecer sem prejudicar a saúde física e mental no processo de vir a ser médico”[i] (TEMPSKI, 2008, p. ).


Em uma análise geral do que foi falado até aqui, Dyrbye, Thomas e Shanafelt (2005) fizeram uma revisão sistemática da literatura (trabalhos publicados entre 1966 a 2004) sobre a angústia do estudante de medicina, suas causas e consequências. As manifestações do sofrimento encontradas foram o estresse, a depressão e o Burnout. As causas prováveis citadas foram a adaptação ao ambiente das escolas médicas, conflitos éticos, exposição à morte e sofrimento humano, o abuso sofrido pelo estudante, eventos da vida pessoal e dívida educacional (os custos para pagar a formação adiando a independência econômica). As consequências foram o cinismo, o baixo desempenho acadêmico (dependendo da personalidade e da situação externa), a desonestidade acadêmica (um quarto dos estudantes admitem a fraude), o uso de substâncias de abuso e suicídio. Uma outra revisão sistemática na área de saúde mental entre acadêmicos de Medicina dos Estados Unidos e do Canadá, no período de 1980 a 2005 encontrou 40 artigos sobre o tema e os resultados sugeriam alta prevalência de ansiedade, depressão e estresse entre os estudantes de medicina, detectando que o sofrimento psíquico é maior do que na população geral (DYRBYE; THOMAS; SHANAFELT, 2006).


No Brasil, foi realizado o Projeto VERAS (Vida do Estudante e Residente da Área da Saúde), que é um estudo nacional coordenado pela Faculdade de Medicina da USP, com o objetivo de conhecer a realidade do estudante de medicina do Brasil através de uma plataforma online. Participaram 22 escolas médicas brasileiras e os dados foram coletados em 2011/2012, com uma amostra randomizada, totalizando 1350 alunos. A plataforma VERAS utilizou questionários validados no Brasil para o estudo das variáveis: (1) Qualidade de Vida, (2) Empatia, (3) Resiliência, (4) Sono, (5) Ansiedade e Depressão, (6) Burnout ou esgotamento profissional e (7) Ambiente de ensino. Os resultados foram apresentados no Relatório Institucional de outubro de 2013[ii] e estão sendo analisados pela equipe de pesquisadores que, em breve, publicarão os dados brasileiros os quais poderão dar uma grande contribuição para esse campo de pesquisa.


A primeira publicação referente aos resultados do VERAS foi a tese de doutorado de Paro (2013), que abordou a empatia entre os estudantes de Medicina. A Empatia pode ser entendida como um “processo de identificação em que o indivíduo se coloca no lugar do outro e, com base em suas próprias suposições ou impressões, tenta compreender o comportamento do outro” (HOUAISS 2001). A autora cruzou as respostas dos instrumentos de empatia, qualidade de vida, sonolência diurna e questionário sócio demográfico, encontrando uma diferença entre os gêneros, ou seja, as mulheres têm maior consideração empática e também mais angústia pessoal do que os homens, porém não houve diferenças de gênero no domínio de tomada de perspectiva. Paro (2013) também não encontrou diferenças nos níveis de empatia nos diferentes anos do curso, o que a levou a inferir que a escola médica não contribui para o desenvolvimento da empatia, apesar desta ser uma das competências enfatizadas nas atuais Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina (CNE/CES nº 4, de 01/11/2001).


Auxiliar os estudantes a serem empáticos e compreensivos com o sofrimento do paciente, mas mantendo o distanciamento necessário para tomar as atitudes profissionais adequadas a cada caso é um grande desafio da educação médica. O sofrimento excessivo com a situação do outro pode prejudicar seu desempenho profissional; por outro lado, o autocontrole exagerado pode levar ao embrutecimento ou frieza, levando consequentemente a uma má prática médica e a uma menor satisfação dos pacientes. O ensino e pesquisa da empatia é importante para clarificar essas questões, já que é evidente que um maior nível de empatia do médico leva a uma maior satisfação de seus pacientes (KIM; KAPLOWITZ; JOHNSTON, 2004).


Para finalizar, quero resumir o que considero que as escolas médicas deveriam fazer para melhorar a saúde mental dos estudantes, baseado não só na literatura e nas pesquisas na área, mas também nos meus vinte anos de experiência como docente e como psiquiatra (e estudante da psicanálise), tendo acompanhado de perto um grande número de alunos que entraram em sofrimento psíquico durante a travessia do curso médico.


Cuidar do futuro cuidador é tarefa das escolas médicas e Nogueira-Martins (2003) subdivide os cuidados que deveriam ser oferecidos pelas escolas médicas em: serviços de atenção psicopedagógica; cuidados com o ambiente de aprendizagem (atmosfera aberta e facilitadora atenua o processo de profissionalização) e inclusão da dimensão psicológica na formação visando desenvolver a sensibilidade para o exercício da intersubjetividade, tanto do aluno como do professor.


Poucas pesquisas mostram resultados de intervenções junto a estudantes de Medicina visando a redução do estresse ou melhoria da qualidade de vida. Um estudo (SHAPIRO, SCHWARTZ; BONNER, 1998) constatou que um programa de oito semanas de treinamento utilizando meditação teve resultados positivos na redução do estresse em estudantes de medicina, diminuindo a percepção de ansiedade, aumentando a empatia, reduzindo o sofrimento psíquico em geral, incluindo depressão e levando a um aumento da espiritualidade.


Oportunizar momentos que contribuam com o autoconhecimento e reflexões entre os estudantes no currículo médico já foi evidenciado como uma maneira eficaz para minimizar o sofrimento durante o curso (CARR; JOHNSON, 2013). Devemos considerar a importância de haver no currículo do curso médico o espaço para abordar a subjetividade de cada um, tanto do aluno e professor quanto do paciente. Se não conseguimos nos ver como seres humanos, repletos de emoções e sentimentos, totalmente envolvidos na nossa subjetividade em todas as nossas ações, reconhecendo limites e frustrações, com certeza passaremos a ter cada vez mais mecanismos de defesa para nos mantermos na racionalidade e distantes do paciente para evitar o sofrimento. A possível diminuição da empatia no transcorrer do curso, provavelmente deve ser uma das consequências desse distanciamento de si mesmo e das estratégias de defesa do ego. A oportunidade de grupos de reflexão oferecidos aos alunos e o debate sincero de temas que preocupam os estudantes são recursos úteis e fáceis de serem disponibilizados pela instituição de ensino.


A Tutoria, no estilo Mentoring, que já utilizada em várias faculdades (BELLODI; MARTINS, 2005), é uma proposta que deveria ser implementada em todas as escolas médicas. Professores que sejam éticos, acolhedores e empáticos e que tenham, pelo menos, uma vez ao mês, um momento e espaço para estar em contato com um pequeno grupo de alunos, serão capazes de fornecer estratégias para que os alunos resolvam seus conflitos, questionamentos e sofrimentos menores que aparecerem durante o curso, além de identificar casos mais graves e que precisam de encaminhamento para profissionais. É claro que não basta a faculdade oferecer um programa para que ele funcione adequadamente e para que os alunos o frequentem, é necessária uma construção, uma aceitação da comunidade, inclusive de outros professores do curso, reconhecendo a legitimidade dessa proposta.


Paralelo à tutoria deve haver um serviço de apoio aos estudantes estruturado e com condições de acolher a todos que o procurarem ou que forem encaminhados. De preferência que os profissionais contratados não estejam diretamente ligados à docência. Sabemos que na maioria das vezes as condições ideais não são possíveis, mas devemos garantir o sigilo e evitar o fornecimento de laudos como forma de proteção aos alunos, até que se chegue à construção do serviço ideal. A retaguarda emocional (BELLODI, 2005) oferecida aos alunos de uma faculdade de medicina particular do Estado de São Paulo mostrou que em média a cada ano 11% dos alunos procuram o serviço de apoio, sendo que as queixas no domínio acadêmico-profissional são mais frequentes nos dois primeiros anos e no último.


Outro aspecto importante é adequação do currículo, áreas verdes (períodos sem aula) que realmente possam ser para tempo livre e não para ocupar com disciplinas eletivas, devem ser resguardadas.


As queixas realizadas por alunos, que já foram exaustivamente identificadas nas pesquisas, deveriam ser ouvidas pelas direções das faculdades médicas. Os resultados das pesquisas científicas na área de saúde mental dos estudantes poderiam ser temas de aulas curriculares, onde o debate seria instituído e propostas específicas para cada escola médica poderiam ser construídas e apresentadas à direção da faculdade. É muito importante que as pesquisas sejam estimuladas, mas é também fundamental que os resultados retornem para a comunidade, sejam discutidos e se transformem em mudanças práticas. Hoje já construímos um conjunto significativo de conhecimento e de evidências cientificas que nos comprovam a necessidade de cuidar de quem cuida e este tema deve fazer parte das propostas dos gestores educacionais.


Dentro das Diretrizes Curriculares do Curso de Graduação em Medicina definida pelo governo (2001), ao abordar as competências e habilidades esperadas do estudante, no capitulo 5°, existe o item XVII: “Cuidar da própria saúde física e mental e buscar seu bem-estar como cidadão e como médico”. Portanto é papel das escolas médicas oferecer as condições necessárias ao estudante para que ele possa ter consciência das mudanças que estão ocorrendo com ele durante o curso, do sofrimento e das estratégias defensivas utilizadas no enfrentamento das dificuldades inerentes a essa fase da vida e para que possa ser um sujeito ativo na busca da própria saúde e qualidade de vida.


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